A Quinta da Boavista, também Torre dos Brandões ou Torre da Marca, como hoje é conhecida

A sua obra Nobres Casas de Portugal, António Lambert Pereira da Silva, abordando a agora denominada Torre da Marca, refere tratar-se de um edifício do século XVIII sem grande valor arquitectónico. Eu discordo, e acredito que semelhante apreciação é o resultado de muita ruralidade percorrida, nas suas pesquisas, e de sobeja escassez de ambientes citadinos visitados. Entenda-se: ambientes citadinos dos da actualidade, povoados de propriedade horizontal até ao céu e de trânsito automóvel até à exaustão. Como é o cenário que ronda, que ameaça e investe perigosamente contra a tranquilidade granítica daquelas paredes venerandas.

Chamou-se-lhe, em eras campónias que o Tempo soterrou, Quinta da Boavista. Ainda o Porto se remetia à Sé e a S. Nicolau e à Vitória, situava-se aquela gran­ja no então Couto e Honra de Cedofeita. É um rosário de gerações até hoje, em que a localizamos na confluência das Ruas de D. Manuel II e de Júlio Diniz – cuja abertura, em 1934, lhe ratou um apreciável naco de terreno. Tem, ante si, o verde frondoso dos jardins que conduzem ao Pavilhão Rosa Mota, designativo assaz mais honesto que o de Palácio de Cristal, não fosse qualquer incauto pensar que cá pelo burgo ainda se cultiva algum bocadinho de Versalhes e adjacências respectivas.

Não, entre aquele arvoredo (a remeter para mais além a campânula encimentada que usa um título que não é seu) e o Palácio da Torre da Marca, fica ainda girândola diária dos autocarros, dos taxis, dos claxons. E, como se buscássemos protecção para os tímpanos, embrenhemo-nos um pouco na História, a saber como tudo aconteceu.

Os Docem, ou do Sem, estirpe de doutores

Foi a partir de uma escritura datada de 1312 que se comprovou a passagem pelo mundo de Martim Docem, cavaleiro nobre de origem aragonesa radicado no Porto, ou talvez nas redondezas, visto a cidade ser então, consabidamente, pouco receptiva a fidalguias. Martim Docem, alvitra-se, teria entrado em Portu­gal integrando o séquito da Rainha Santa Isabel, de cuja Casa o seu filho Pedro Docem, ou Pêro do Sem, foi Cavaleiro. Este último há-de ter sido personagem grada na Corte de D. Afonso IV, onde exerceu as funções de Ouvidor (nomeado em 1327) e, posteriormente, de Chanceler-mor. E imputa-se-lhe ainda a construção da velha torre, naquela Quinta da Boavista, pelos anos de 1336 a 1341.

A torre ainda lá está, genuinamente medieval, na ala norte da actual edificação, pedra nua de secção rectangular, o topo rematado por merlões pontiagudos e uma linha de cachorros onde assenta­riam pranchas de madeira, tudo pensa­do para a defesa armada de assaltos que, nessa época, eram possibilidades reais. Presume-se que tenha sido a principal num paço acastelado que os anos consumiram e o palácio setecentista abafou enfim. É, para todos os efeitos, uma torre a sério, sem contrafacções. E permaneceu longamente na descendência do seu fundador: veio à posse do filho deste, João do Sem, que por sua vez a transmitiu ao seu, Gil do Sem. Abramos aqui um parêntese versando os elevados cargos que os Sens continuaram a ocupar. Gil do Sem, Doutor e prestigiado jurisconsulto, foi do Conselho de D. João I, ao lado de quem batalhou em Aljubarrota; quando morre o célebre João das Regras, é nomeado, em sua substituição, Desembargador-mor do Reino. Também o seu filho e sucessor, Martim do Sem, se doutoraria, sendo depois indigitado embaixador de D. João I em Castela (onde interveio nas negociações da paz) e em Inglaterra; armado Cavaleiro pelo então Príncipe D. Duarte, seguidamente à conquista de Ceuta, coube-lhe a responsabilidade de governar a sua Casa e a alcaidaria-mor de Estremoz. Um e outro – Gil do Sem e Martim do Sem – jazem sepultados na capela de S. Pedro, da igreja de S. Domingos, em Santarém. Percebe-se que terão vivido ambos muito arredados do Porto.

De Martim do Sem foi herdeiro o seu sobrinho João do Sem: outro Doutor, pontificando no Conselho de D. Afonso V como seu Chanceler-mor. E a linhagem prossegue com António do Sem, filho deste último, que igualmente se deixa seduzir pela carreira das Letras. Não obstante, participa na batalha do Toro, obviamente na haste do Africano, revelando-se um «valente soldado», circunstância a que se dá o devido ênfase em carta de mercê deste monarca, que o incluiu também entre os seus conselheiros. Tal incumbência manteve-a ainda nos reinados de D. João II e de D. Manuel I.

A Quinta da Boavista com a sua torre vem, enfim, à titularidade de um outro Pedro do Sem, filho deste combatente do Toro (e pentaneto do primeiro Pêro do Sem). E com ele a propriedade se transfere terminantemente para outra família – a de João Sanches, fidalgo castelhano, casado com Isabel Brandoa, aparentada com os Condes da Feira, os quais a compraram por escritura de 26 de Fevereiro de 1492.

Uma lenda, um equívoco

E dos Sens, apelido que profetiza ausência, não mais se ouve falar. Não tinha qualquer conexão com eles o mercador de origem hamburguesa, Pedrossem da Silva, que o Porto setecentista conheceu, ao que consta cavalheiro muito afamado pela sua sovinice e pouco apreciado entre os seus pares. São talvez esses os ingredientes com que as gentes cozinharam a célebre lenda do Pedro Sem, negociante opulentíssimo que, do alto da sua Torre da Marca – como esta é usual­mente tratada -, gozava o panorama dos seus navios carregados de riquezas entrando na barra e desafiava a cólera divina: «Agora nem Deus seria capaz de me empobrecer»… Todos temos a noção de que o Senhor, nesses idos, não primava pelo bom humor. Donde a inclemência e o castigo terrível: uma tempestade repentina, vagas que se erguem nas alturas, um vento insano e a frota num ápice tragada pelas águas. Dias depois mendigava o blasfemo pela cidade – «dai esmola a Pedro Sem, que já teve e agora não tem»…

Mesmo a denominação «Torre da Marca» é imprópria – conquanto já inextraível dos hábitos tripeiros – posto aludir a um paredão que servia de guia à navegação na foz, o qual existiu, efectivamente, mas construído em 1542 pela Câmara do Porto, algures onde depois se desenharam os jardins do Palácio de Cristal.

Os Brandões, fidalgos de nomeada

Mais correcto seria chamar-lhe «Torre dos Brandões», pois papéis há em que assim é identificada. Tudo devido à alie­nação, atrás referida, aos pais do Dr. António Sanches Brandão e de Rui Brandão Sanches.

Um depois do outro e a descendência do por último mencionado continuaram a Casa. Voam as gerações dos Brandões, muito ufanas do seu foro de Fidalgos da Casa Real (desde, pelo menos, 1583). No Sul vão enriquecendo os anais da sua estirpe com casamentos de peso e esse é o caminho por que entram na sua esfera patrimonial a Quinta de Carvalho de Arca (junto a Guimarães) e as imemoriais Torre dos Coelheiros (em Évora) e Honra de Farelães (no termo de Barcelos).

Em 4 de Abril de 1743 nasce Luís Brandão de Melo Pereira de Lacerda, finalmente quem venha morar para a Torre da Marca. É ele que planeja e ordena a edificação da actual residência, sobre cujo portal de entrada é mais tarde colocado o brasão de armas, um escudo esquartelado de Brandões, Meneses (de Cantanhede), Portugal e Melos e enci­mado por um coronel de Marquês. Ver­se-á porquê.

Mas antes não será de olvidar uma breve descrição da sua arquitectura: a fachada principal, voltada a sul, é embelezada por sete janelas avarandadas no andar nobre. Já o lado poente, com doze janelões de sacada, deita para um amplo terraço com comunicação para os jardins. A torre anciã protege a extremidade norte do conjunto. O acesso dos visitantes para lá do pátio gradeado é possível através de um portão já na qui­na da Rua de D. Manuel II. Depois, além do piso térreo, há o intermédio e o cimeiro, entretanto acrescido de umas águas-furtadas. Interiormente, centra­se um átrio de pedra com ligação a todas as alas do edifício.

De Luís Brandão foi primogénito e sucessor José Maria Brandão de Meio Cogominho Correia Pereira de Lacerda, que casou em 1814 com D. Maria Emília Correia de Sá, filha herdeira de Sebastião Correia de Sá, 1.º Conde e 1.º Marquês de Terena e 1.0 Visconde de S. Gil de Perre. Também estes títulos, por isso, transitaram para os Brandões da Torre da Marca.

Por sua vez, José Maria Brandão e D. Maria Emília Correia de Sá tiveram como filho Luís Brandão de Meio Cogominho Correia de Sá Pereira e Figueiroa, 10.0 Senhor do vínculo da Torre da Marca, 20.0 do da Torre dos Coelheiros, 15.º da Honra de Farelães, 8.0 do Morgado e S. Paio e Carvalho de Arca, Par do Reino e continuador dos títulos nobiliárquicos maternos: foi o 3.° Conde e o 2.° Marquês de Terena. Casou com D. Maria Ana de Sousa Holstein, filha dos 1.os Duques de Palmela.

Está para breve o fim da dinastia Brandão. Os 2.os Marqueses de Terena têm apenas a D. Eugénia Maria Filomena Brandão de Melo Cogominho Correia de Sá Pereira de Lacerda do Lago Bezerra e Figueiroa que, prosseguindo aquela multissecular e nobre Casa, se consorcia com o seu tio, o 1.º Marquês de Monfalim, D. Filipe Maria José Pedro Estevão Evangelista Francisco Sales Xavier de Assis de Borja de Paula de Sousa Holstein. É uma união sem geração que conduz a Torre da Marca por meandros testamentários até uma sobrinha do casal, D. Eugénia de Jesus Maria José Ana Joa­quim de Sousa Holstein, que professará na Ordem das Irmãs de Santa Doroteia.

Logicamente, são as Doroteias as futuras proprietárias da Torre, antes ainda do falecimento da irmãzinha D. Eugénia de Jesus, ocorrido em 1937. Atentemos na proclamação da República e na sequente posição de incomodidade, dela resultante, para o clero em geral e as Ordens religiosas em particular.

A Torre da Marca – Paço Episcopal do Porto

Logo então a sanha jacobina dos vence­dores deu vida à Lei dita de Separação do Estado das Igrejas, pretexto para, aqui na cidade, a Câmara abocanhar o Paço do Bispo, junto à Sé. D. António Bar­roso (após o seu exílio, de 1911 a 1914) e o seu sucessor D. António de Barbosa Leão remediaram-se num palacete arrendado na Quinta de Sacaes, onde é hoje a Avenida Camilo. A Diocese congemina, entretanto, comprar instalações condignas para o seu Prelado, mediante o recurso a uma subscrição a realizar pelos fiéis. Em 1919 efectua-se a necessária escritura aquisitiva: o objecto do negócio é a Torre da Marca.

Aspectos curiosos: a primeira missa celebrada aplicou-se pela alma dos Marqueses de Monfalim. O empório comercial do Comendador Domingos Gonçalves de Sá & Filhos financiou a transacção, emprestando a quantia do preço sem juros nem outras garantias além da palavra dos clérigos outorgantes. Houve que proceder a obras, ali ia residir o Bispo, ali se fixaram diversas repartições eclesiásticas, ali funcionou – o edifício quase rebentando pelas costuras ­ o Seminário de Estudos Preparatórios, depois levado para a Rua do Vilar. Somente em 1964 o Paço Episcopal tornou às origens. O que significa que a Torre da Marca acolheu sucessivamente D. António de Barbosa Leão, D. António Augusto de Castro Meireles, D. Agostinho de Jesus e Sousa, D. António Ferreira Gomes (enquanto não experimentou as agruras do desterro) e o seu substituto, D. Florentino de Andrade e Silva. Mas, quando a casa vagou, imediatamente houve que pensar na ocupação a dar-lhe.

O Centro de Cultura Católica e a Fundação Spes

De imediato foi divulgada uma nota da Secretaria Episcopal anunciando a intenção de ali instalar «um centro de irradiação da cultura católica, principalmente para o laicado». As iniciativas visavam ministrar uma formação teológica de grau médio mediante a organização de cursos, conferências, colóquios e mesas-redondas. Ou outras afins: até o Curso de Direito da Universidade Católica na Torre da Marca estanciou, plausivelmente nos anos de maior turbulência que aquelas paredes vetustas conheceram.

E numa das suas alas é inaugurada, em 13 de Julho de 1995, a sede da Fundação Spes, cuja criação resulta da vontade de D. António Ferreira Gomes, expressa no seu testamento e visando promover «a formação e desenvolvimento intelectual dos adultos que se queiram cristãos, para o desenvolvimento de uma civilização da Beleza e do Amor, objectivos a atingir através de uma biblioteca e de conferências e cursos na área da filosofia, sociologia e teologia, destinados a pessoas formadas e regidos por mestres eminentes, podendo depois ser publicados em livro».

As obras mais recentes

Recordo-me vagamente de visitar a Torre da Marca, vão lá mais de vinte anos, e a impressão que me ficou foi o tom macilento de uma repartição pública pejada de guichets. Agora, por causa destas notas, pedi novamente licença para entrar e o que se me deparou avantajava-se pela diferença. Eram os tectos rejuvenescidos, de maceira ou de estuque (a merecer especial referência do Dr. Flórido de Vasconcelos em Os Estuques do Porto: Património Mundial, edição da Câmara Municipal), o soalho que não chiava em passando, um cheiro a fresco, um silêncio recolhido nos salões de co­res claras. Iluminação cheia de vida, gabinetes insonorizados para os aprendizes de música, uma biblioteca repleta. E, sobre o todo, o respeito devido a um imóvel carregado de História e de pormenores arquitectónicos da época em que se construía com vagar e sentido estético. Gostei. A Torre da Marca vive outra vez os seus tempos de imponência, com um espírito de missão que, na minha óptica, era o dos seus donos do Passado, gente que se fez grande ajudando a engrandecer Portugal.

Bibliografia

Além da mencionada obra de António Lambert Pereira da Silva, v. o estudo do Rev. Dr. J. Go­dinho de Lima em Monumentos Revista da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Março de 2001, págs. 43-47.

 

João Afonso Machado
O Tripeiro 7ª série 22/1 (2003) 6-8.