De joelhos diante de Deus!

Antes do II Concílio do Vaticano – cuja primeira sessão foi em 11 de outubro de 1962 – um observador das atitudes dos fiéis nas celebrações litúrgicas diria, simplificando um pouco, que a Igreja romana latina era uma Igreja sempre de joelhos, a Igreja ortodoxa sempre de pé e a Igreja protestante sobretudo sentada. No tocante à Igreja católica romana, esta situação alterou-se radicalmente, por ação do movimento litúrgico (o primeiro Congresso Litúrgico Português em que este movimento emergiu foi já em 1926!) e pela aplicação da reforma litúrgica decidida pelo II Concílio do Vaticano. Um certo radicalismo, porém, que não se pode apoiar nem na letra nem no espírito da renovação conciliar, aqui e ali suprimiu, pura e simplesmente, a atitude de joelhos e toda e qualquer genuflexão durante a Missa.

Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a atitude da oração era a posição de pé. Contudo o pôr-se de joelhos – chegando, mesmo à prostração total – era também um gesto bem conhecido (1 Rs 8, 54; Dn 6, 11; Sl 94(95), 6; Lc 22, 41-43; At 7, 60; 9, 40; 20, 36; 21, 5; Ef 3, 14; Fl 2, 10). Coerentemente, a Liturgia cristã privilegiou a atitude de pé como posição normal de oração – vejam-se as imagens do/a orante nas mais antigas expressões da arte cristã) mas, simultânea e progressivamente valorizou a atitude de joelhos como uma posição especial, com um significado próprio. O significado particular deste gesto – e o mesmo se passou com tantas palavras – sofreu com o andar dos tempos uma evolução semântica: originariamente era uma expressão de oração diante de Deus em adoração, súplica ou/e penitência; tornou-se também, sobretudo a genuflexão com um só joelho, um gesto de saudação, veneração e homenagem a pessoas e coisas; finalmente, sobretudo a partir do século XIII, tornou-se o sinal típico da adoração reservada ao Sacramento da Eucaristia.

Nos tempos modernos a posição de joelhos generalizou-se entre os fiéis católicos durante praticamente todas as orações e celebrações litúrgicas, com raras exceções, como para o Evangelho. Ficar de pé era como ficar à entrada ou à porta da Igreja; um sinal de indiferença, preguiça e má vontade! Para os fiéis minimamente fervorosos, rezar e estar de joelhos eram indissociáveis. Isto significava, porém, que o significado particular desta posição se diluíra e, praticamente, desaparecera.

Na sequência do Movimento litúrgico, a reforma pós-conciliar da Liturgia, simultaneamente restituiu à posição de pé a sua principalidade e à posição de joelhos a sua particularidade. Neste sentido é de uma clareza meridiana a norma da Instrução Geral do Missal Romano, nº 43: «Os fiéis estão de pé: desde o início do cântico de entrada, ou enquanto o sacerdote se encaminha para o altar, até à oração coleta, inclusive; durante o cântico do Aleluia que precede o Evangelho; durante a proclamação do Evangelho; durante a profissão de fé e a oração universal; e desde o convite “Orai, irmãos”, antes da oração sobre as oblatas, até ao fim da Missa, exceto nos momentos adiante indicados» [que são quando se devem sentar ou ajoelhar]. A Conferência Episcopal Portuguesa, em nota de 20 de outubro de 1969, confirmou esta indicação para o nosso país.

O momento próprio para os fiéis se ajoelharem na Missa é o início da epiclese, quando o Celebrante que preside estende as mãos sobre o pão e o vinho, invocando o Pai para que os santifique e transforme, pela força do Espírito Santo, no Corpo e Sangue de Cristo. Em princípio todos se porão de pé para a aclamação de anamnese, em reposta a “Mistério da fé”. A atitude é, pois, expressiva da adoração, ao mesmo tempo que mantém o seu significado epiclético de súplica intensa pelo dom do Espírito. Nessa atitude, com efeito, se cantava outrora o Veni Sancte Spiritus e ainda hoje os Orientais celebram no dia de Pentecostes o Ofício da genuflexão com um sentido análogo. Fora da Missa, a atitude de joelhos é expressiva de uma súplica intensa na Sexta-Feira Santa e durante o canto das Ladainhas fora dos Domingos e do Tempo Pascal; manifesta a fé na Incarnação do Verbo durante as palavras correspondentes do Credo no dia de Natal e da Anunciação; exprime a contrição em certos momentos da celebração penitencial…

Não há dúvida: a reforma litúrgica renovou o significado profundo e autêntico da atitude de joelhos e do gesto da genuflexão. Não desprezemos esta linguagem do corpo, particularmente apta para significar a adoração que só a Deus é devida, bem como para exprimir e intensificar os nossos sentimentos de penitência e a nossa prece humilde e ardente. Mas também não abusemos dela adotando-a quando não está prevista (por exemplo: durante a aclamação de anamnese, como se fosse congruente aclamar de joelhos…; ou na receção da Comunhão eucarística, numa atitude individualista que colide com o caráter comunitário da participação litúrgica).

Secretariado Diocesano de Liturgia
Voz Portucalense (18 de outubro de 2023) 16.