Francisco: a ânsia de viver o Evangelho

Na comoção das primeiras horas após a morte do papa Francisco, foram tecidas tantas recordações deste papa: na imprensa e nas redes sociais, na televisão e na rádio, em conversas privadas e em manifestações públicas… De facto, são muitos os que o ouviram, o viram e o encontraram pelo menos uma vez, e todos ficaram com uma forte impressão. Este cruzamento de recordações acabou por pintar um fresco ao qual, de hora a hora, são acrescentados novos elementos, novos pormenores e novas cores. São mais nítidos os traços que voltam com mais frequência à memória de muitos: o estilo sincero e direto, a autenticidade humana e o radicalismo evangélico… São também nítidas muitas das imagens frequentemente recordadas: o amigo dos pobres, o papa das periferias, o pregador da paz, o líder mundial, o inimigo de toda a hipocrisia… As cores fortes dizem quão vasto e profunda foi a marca deixada por este papa no coração de muitos. Em contrapartida, as cores menos vivas, que por vezes se desvanecem no cinzento da banalidade, presentes nas margens do fresco, ajudam-nos a compreender a amplitude das pessoas a que Francisco chegou: foi «uma pessoa normal», «sabia falar com as pessoas comuns», «encontrava-se com todos»…

Estas múltiplas vozes, na sua variedade, são essenciais para compreender quem foi Francisco. De facto, os “peritos” – a qualquer título que se presumam – aparentam estar em dificuldades. Esforçam-se por identificar com certeza os traços decisivos do seu pontificado. Há quem pense que, se deixou uma marca importante na vida de muitos, a sua marca na história não foi tão importante. Comparam-no com João XXIII, cuja convocação do Concílio foi um acontecimento de indubitável relevância histórica; com Paulo VI, cujo projeto complexo e governo atento guiaram o caminho difícil da Igreja pós-conciliar; com João Paulo II, a quem todos reconhecem uma capacidade de visão global e a quem muitos atribuem o mérito de ter contribuído para a queda do Muro; com Bento XVI, um teólogo de grande estatura… Comparado com os seus antecessores, dizem alguns, o papa Francisco fez menos ou fê-lo de forma menos conseguida.

Na verdade, um sentimento de incompletude acompanhou também o fim de outros pontificados: João XXIII viu apenas o início do Concílio; à morte de Paulo VI, a Igreja parecia muito dividida; as viagens em falta a Moscovo e a Pequim foram vividas por João Paulo II como uma ferida profunda; a renúncia ao ministério petrino fez com que o pontificado de Bento XVI parecesse também um pontificado interrompido. Todos os pontificados ficam, em certa medida. inacabados, porque a vida nunca para, modifica as situações e suscita novos problemas… É verdade, de algum modo, para todos os papas o que Francisco escolheu conscientemente fazer: abrir processos, mais do que concluí-los. É, portanto, sobre os processos que iniciou, mais do que sobre os resultados alcançados, que precisamos de nos deter e refletir.

Entre eles está, sem dúvida, o indicado pela Evangelii gaudium, o documento programático de início de pontificado. A exortação apostólica indicava claramente o caminho da «conversão pastoral e missionária», uma perspetiva nova e desconcertante, através da qual – diríamos com as palavras de São Paulo – o que na Igreja parecia «mortal», isto é, ultrapassado e transitório, «seria absorvido pela vida». Relida hoje, parece ser ainda um documento de grande frescura, novidade e originalidade. A Evangelii gaudium não foi recebida com a atenção que Francisco esperava: deixou-o claro ele próprio quando, dois anos depois, dirigiu aos bispos italianos um convite à sua leitura. Mas muitas das perspectivas, propostas e ideias desse documento foram progressivamente recebidas. A centralidade dos pobres na vida da Igreja entrou hoje no sentir comum de muitos crentes; procurar antes de mais o «cheiro das ovelhas» é um objetivo que bispos e sacerdotes se propõem mais do que antes; que a rejeição dos migrantes é um escândalo incompatível com o Evangelho é hoje muito mais claro aos homens e mulheres da Igreja; não discriminar e não afastar do Evangelho aqueles que são “diferentes” por razões étnico-nacionais, económico-sociais ou de género é praticado mais frequentemente nas comunidades eclesiais… Talvez seja verdade que as reformas institucionais introduzidas pelo papa Francisco – estrutura da Cúria, gestão dos recursos económicos, etc. – não parecem totalmente definidas. Mas não foi esse o centro da sua ação, inspirada sobretudo por uma ânsia de viver e fazer viver o Evangelho, que exige, em primeiro lugar, uma profunda mudança de mentalidade. É por isso que, antes de julgar apressadamente o pontificado de Francisco, convém escutar atentamente as numerosas pessoas que ontem o encontraram e que hoje choram a sua partida.

Agostino Giovagnoli*

Traduzido de VP Plus+ (26/4/2025).

*Professor de História Contemporânea na Università Cattolica del Sacro Cuore, Milão.