É de grande importância o serviço da proclamação da Palavra de Deus nas celebrações litúrgicas. Trata-se, com efeito, de um ministério ao serviço da “incarnação” do Verbo.
Os Judeus já conheciam este “ministério” nas celebrações da Sinagoga e S. Lucas informa-nos de uma vez em que o próprio Jesus fez de Leitor na Sinagoga da Sua terra natal (Lc 4, 16).
«A figura de Jesus, de pé ante a assembleia, com o volume do profeta Isaías nas mãos, lendo a Palavra divina no quadro da liturgia sinagogal, ilumina só por si um ministério que tem como objeto “proclamar a Palavra de Deus nas celebrações litúrgicas…”»[1].
Atendendo à importância da Palavra de Deus na vida da Igreja e nas suas celebrações, pode deduzir-se que o serviço da sua proclamação é seguramente de origem apostólica.
São Justino, ao descrever a Eucaristia dominical na sua Apologia I (c. 150) já refere o serviço dos que proclamam as leituras dos Profetas e dos Apóstolos como distinto do ministério daquele que preside e aplica a Palavra proclamada à vida dos fiéis[2]. Por volta do ano 200, Tertuliano fala do Leitor como de um ministério certo e estável[3].
No primeiro terço do séc. III, a Tradição Apostólica (n. 11) distingue nitidamente o ministério dos Leitores dos ministérios ordenados dos bispos, presbíteros e diáconos. Estes são investidos/consagrados mediante o rito da imposição das mãos, ao passo que o rito da investidura do Leitor consiste, simplesmente, na entrega do livro.
Pouco depois, São Cipriano de Cartago informa em duas das suas cartas que instituiu leitor a um jovem confessor da fé para que ele, «dominando a todos desse pódio elevado visível a todo o povo – assim se referia ao ambão – proclamasse a lei e o evangelho do Senhor» tal como o fizera com desassombro ao confessar a sua fé na barra do tribunal[4].
Uma coisa é certa: o ministério do Leitor era tido em grande estima pela Igreja antiga. Não só lhe competia a proclamação das leituras na celebração, mas tinham também um papel a desempenhar no âmbito catequético, sendo-lhes confiada a guarda dos próprios livros sagrados, um dos tesouros mais preciosos e vitais da Igreja. Era-lhe exigida ciência, cultura e memória e, ao mesmo tempo, a credibilidade dos mártires e Confessores.
Dos testemunhos patrísticos e arqueológicos decorre que os leitores, cuidadosamente formados no conhecimento das Escrituras, tinham a faculdade de ler todos os livros sagrados nas celebrações litúrgicas, incluindo os Evangelhos cuja proclamação passou a ser reservada aos diáconos entre o séc. IV e o início do VII.
E esse é o período da decadência e transformação do leitorado, com o crescimento das assembleias, o desempenho deste serviço começa a ser confiado a crianças, talvez porque o timbre agudo e cristalino das suas vozes era mais propício à audição nos espaços mais amplos das basílicas. O Papa Sirício, sucessor de São Dâmaso (384-399), dá testemunho dessa evolução[5]. Com esta desqualificação dos leitores, compreende-se que, a partir da época de São Gregório Magno, eles tenham sido expropriados do seu múnus em favor dos diáconos (proclamação do Evangelho) e dos Subdiáconos (proclamação das outras leituras e dos cantos da Missa), ao mesmo tempo que se reduziam as vigílias noturnas com as suas numerosas leituras. Progressivamente, ao longo da Idade Média, o Leitorado será reduzido à condição de «ordem menor», o segundo degrau de uma escada que os clérigos deviam ir subindo antes de receberem as «ordens maiores» (subdiaconado, diaconado, presbiterado e episcopado). A investidura de leigos neste serviço, ligada a privilégios feudais, vai-se tornando cada vez mais excecional. O Concílio de Trento (1545-1563) não conseguiu restaurar as antigas funções das ordens menores que continuaram reduzidas a etapas do itinerário formativo de acesso às ordens maiores. O cân. 949 do CDC de 1917 mantém a distinção entre ordens maiores e ordens menores, ocupando o leitorado a penúltima posição, após o ostiariado.
Há quase 60 anos, o II Concílio do Vaticano realizou uma verdadeira conversão na forma de a Igreja se ver a si própria. Em vez de «sociedade desigual», um mistério de comunhão à imagem da Trindade. Em vez de uma pirâmide com a Igreja discente, submissa, na base e, por cima dela, e dela destacado, o “clero” em camadas sucessivas de ordens menores e maiores, “baixo” e “alto clero”, até ao vértice, uma grande roda, um grande círculo em que todos os batizados se dão fraternalmente as mãos como fiéis de Cristo e no Amor do Espírito, comungantes, numa plataforma comum em que há distinção, mas não separação ou sobreposição de ordens, ministérios, serviços.
A Igreja não deixa nem pode deixar de ser hierárquica, mas o ministério ordenado, origem desta “ordem sagrada”, não se coloca em relação com o sacerdócio universal de todos os batizados numa posição de mais e menos, acima e abaixo, porque não é de grau – mas essencial – a diferença entre ambas as formas de participar no único e perfeito sacerdócio de Cristo. Consequentemente, ambos esses modos de “ser” sacerdote se colocam frente a frente, no serviço e acolhimento recíproco. Na verdade, quem está mesmo no centro e acima é Cristo, Mestre e Senhor, Sumo-Sacerdote do sacrifício que consistiu na entrega de si mesmo, no Espírito eterno, em adesão filial ao Pai e no serviço de amor aos discípulos, curvando-se para lhes lavar os pés, descendo ainda mais, até às alturas abissais de Cruz redentora.
A receção desta eclesiologia convertida – e o processo de conversão já vinha de longe – começou logo, durante e após o Concílio, não obstante todas as crises inerentes aos tempos de viragem epocal e de profunda mutação cultural que atravessamos. E continua. Recuperou-se o sentido e valor da “participação” – não apenas na Liturgia mas em toda a plurifacetada missão da Igreja – que é da ordem dos fins, direito e dever de todos os que integram o “sacramento de unidade” que é o Povo Santo reunido e ordenado sob a direção dos Bispos. Começou a falar-se e a urgir-se a “corresponsabilidade” que deve ser orgânica. Por isso criaram-se ou restauraram-se órgãos e instâncias de participação e corresponsabilidade. É o que o Papa Francisco procura hoje sustentar e incrementar com a linguagem e prática da “sinodalidade”.
Um dos vetores desta receção é o da ministerialidade. Neste capítulo, muito caminho há ainda a fazer para superarmos o clericalismo associado à eclesiologia herdada e persistente. Porventura será necessário o suceder-se das gerações para que as velhas práticas, estilos e tiques se modifiquem. Se bem que, por vezes, se tenha a sensação de que as gerações mais recentes, que não viveram a primavera conciliar nem o verão quente que se lhe seguiu, sejam mais arcaicas (com toda a cibernética de nativos digitais) que as de há cinquenta ou quarenta anos…
No capítulo da ministerialidade, São Paulo VI quis “desclericalizar“: a reforma veiculada pelo m.p. Ministeria quaedam (15/08/1972) suprimiu o rito da tonsura como porta de entrada no estado clerical e reformou a disciplina das chamadas, até então, “ordens menores” (redimensionadas e reduzidas a duas: Leitorado e Acolitado), transformando-as em “ministérios laicais” instituídos, radicados nos sacramentos da Iniciação cristã e não no Sacramento da Ordem e, por isso, abertos aos christifideles laici e não reservados ao clero como até então. Às Conferências episcopais foi deixada a responsabilidade de propor a instituição de novos ministérios que correspondessem às necessidades reais da missão da Igreja nos seus territórios.
Analisando o processo de receção do programa de “reformação” da ministerialidade eclesial, segundo os ditames do Concílio e o impulso de São Paulo VI,
constata-se:
– Foi feito um caminho notável no reconhecimento e promoção da natureza carismática e ministerial de todo o povo santo de Deus. Mesmo sem estatuto formal, uma ampla e difusa ministerialidade emergiu nos vários setores da vida eclesial: catequese, liturgia, caridade… Graças a Deus, temos um exército numeroso de leitores «de facto» nos termos dos §§ 2 e 3 do Cân. 230 do CDC de 1983 (em vigor). Mas não há leitores instituídos a não ser entre os candidatos ao Sacramento da Ordem.
Porque razão “abortou” a proposta dos ministérios laicais instituídos?
A resposta – esta é uma opinião que partilho convosco e é subscrita por muitos dos que se debruçam sobre esta matéria – está na exclusão canónica das mulheres do acesso à instituição. Porque uma «venerável» tradição recomendava que os ministros ordenados, antes de o serem, exercitassem durante algum tempo os ministérios do Leitorado e Acolitado, vincularam-se estes ao itinerário formativo dos candidatos à ordenação. E porque a ordenação está canonicamente reservada aos fiéis do sexo masculino, reservou-se também a estes o acesso aos ministérios laicais instituídos.
Depois de São João XXIII (11 de abril de 1963) ter reconhecido como «sinal dos tempos» «o ingresso da mulher na vida pública» (Pacem in terris, 41) – «cada vez mais consciente da sua dignidade humana, a mulher já não tolera ser tratada como um objeto ou um instrumento, mas reivindica direitos e deveres consentâneos com a sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social» (ibid.) – não era fácil a posição dos bispos: instituir apenas cristãos leigos do sexo masculino nos ministérios laicais e excluir dos mesmos as mulheres fiéis de Cristo era ir contra os «sinais dos tempos».
E poucos se atreveram. Veja-se o caso português em que a Conferência Episcopal, após a promulgação do novo Código de Direito Canónico, decretou sobre os requisitos dos candidatos aos dois ministérios instituídos (Decretos gerais para aplicação do novo código de direito canónico, 1985). Com alguma exceção sem continuidade, os Bispos apenas conferiram a instituição no Leitorado e Acolitado a candidatos às ordens do diaconado e presbiterado. Caso contrário, arriscavam-se a criar um problema maior nas comunidades cristãs onde tal discriminação já deixara de acontecer na ministerialidade “de facto”. E por esta se ficaram…
A necessidade de rever a normativa canónica já tinha sido amplamente debatida no Sínodo sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo (1987)[6] e até prometida por São João Paulo II na Exortação Christifideles laici, anunciando a constituição expressa de uma Comissão para examinar o assunto[7]. Efetivamente, sendo os ministérios instituídos radicados nos Sacramentos da Iniciação cristã e não no sacramento da ordem, e porque em Cristo não há homem nem mulher (Gal 3, 28), qualquer exclusão ou discriminação na base do sexo carece de fundamentação teológica e só pode ter motivação disciplinar, suscetível de atualização e revisão.
Também na décima segunda Assembleia Geral Ordinária, de 2008, sobre a Palavra de Deus na vida e missão da Igreja se pediu a revisão desta disciplina, em relação ao ministério do Leitorado[8]. E nova insistência sinodal aconteceu na Assembleia Especial Pan-Amazónica, de 20l9[9].
Mas foi preciso esperar pelo Papa Francisco para se superar este impasse tão prejudicial para o desenvolvimento harmónico e afirmação na vida da Igreja dos ministérios instituídos. Em 10 de janeiro de 2021, com a publicação da Carta Apostólica m.p. Spiritus Domini foi revisto o § 1 do cân. 230, suprimindo apenas uma palavra do texto oficial latino: viri. «Os leigos [omite-se: do sexo masculino] possuidores da idade e das qualidades determinadas por decreto da Conferência episcopal, podem, mediante o rito litúrgico, ser assumidos de modo estável para desempenharem os ministérios de leitor e de acólito…». É iluminador ler a carta que, na mesma data, Francisco dirigiu ao Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé esclarecendo o assunto do ponto de vista teológico.
Francisco pretende, claramente, que o tema dos Ministérios Laicais, com horizontes alargados e sem restrições indevidas, volte à agenda pastoral das Igrejas particulares.
Em 22 de junho de 2022, a Conferência Episcopal Portuguesa tornou pública uma instrução pastoral intitulada Ministérios Laicais para uma Igreja ministerial. Este documento, que pode ser lido, nomeadamente, no livro Instituição de Catequistas», editado pelo SNL (Fátima, 2023, pp. 51-83), mereceria uma maior divulgação. Claramente, os Bispos de Portugal querem acertar o passo com a agenda pastoral do Papa Francisco (Ministérios, 10) que, aos ministérios instituídos do Leitorado e do Acolitado, acrescentou o de Catequista (cf. Francisco, Antiquum ministerium (10 de maio de 2021).
Quais as características dos ministérios instituídos? O documento da CEP enumera algumas:
a) Vocacional: eis um ponto decisivo na hora de fazer o discernimento acerca dos leigos a instituir. Porque nem todos os leitores, nem todos os acólitos, nem todos os catequistas preenchem os requisitos para receber os correspondentes ministérios laicais instituídos. Para além da necessária formação e do exercício de facto desses serviços eclesiais, numa base de voluntariado que dimana da condição batismal, importa discernir se o desempenho de tais tarefas «brota de uma “vocação” que é dom e graça do Espírito Santo e é um “carisma” a reconduzir à fonte de todos os carismas»; «os ministérios devem ser considerados uma verdadeira vocação, isto é, um chamamento da Igreja que reconhece em tal pessoa um projeto divino sobre ela, a fim de servir o Povo de Deus e a sua missão» (CEP, Ministérios, l0).
b) Laical: não se trata de prestar uma colaboração mais ou menos supletiva em funções próprias dos pastores da Igreja, mas sim, de viver em plenitude, na Igreja e no mundo, a condição e missão de batizados/crismados participando na missão da Igreja segundo o seu próprio dom e com responsabilidade própria. Quem os exerce não é “clérigo” nem se deve deixar clericalizar. E o ministério que lhes é confiado, mesmo que tenha um forte conteúdo litúrgico, não se esgota no âmbito cultual mas alarga-se à missão de uma Igreja serva, sempre em saída para o mundo que é preciso levedar com o fermento do Evangelho e “consagrar”.
c) Necessário: no contexto de uma rica o pluriforme ministerialidade, os ministérios instituídos dão resposta a necessidades certas e permanentes da vida e da missão da Igreja. Não se trata de responder a situações de emergência ou de exceção, para as quais o Espírito não deixará de suscitar carismas especiais e, até, ministérios «extraordinários» sempre a exercer na comunhão hierárquica. Porque se trata de dar resposta a necessidades reais e constantes que decorrem da identidade e missão da Igreja, os ministérios laicais instituídos não se inventam à toa nem decorrem de processos caprichosos de aparente criatividade pastoral. A par e em diálogo com os ministérios ordenados, eles estruturam e tornam visível a diaconia da Igreja.
d) Eclesial: «como todos os «carismas» – e muito mais quando, “em estado de serviço” – os ministérios instituídos, reconhecidos pela Igreja Local, ordenam-se ao bem da Igreja e o seu exercício só faz sentido inserido na comunhão da mesma Igreja. À nota da eclesialidade pertence ainda o caráter público quer da colação (celebração da instituição) quer do exercício, que caracteriza estes ministérios e pela qual se exprime o reconhecimento que a Igreja deles faz» (Ibid.).
e) Estável: esta característica é consequência da raiz sacramental (Batismo/Confirmação), do carácter vocacional e da duração permanente das necessidades às quais o ministério dá resposta. Não se trata de um «mandato» a termo para colaborações mais ou menos supletivas e temporárias. Por isso, o seu exercício supõe a responsabilidade dos sujeitos e estabilidade na prestação dos serviços inerentes, por tempo prolongado. Por isso, não se repete o rito da instituição e terá de se considerar excecional o trânsito entre ministérios. «Todavia, o exercício do ministério pode e deve ser regulado na sua duração, conteúdo e modalidades por cada Conferência Episcopal, conforme as exigências pastorais» (Ibid.).
A instrução da Conferência Episcopal Portuguesa – Ministérios Laicais para uma Igreja ministerial, 22 de junho de 2022 [= MLIM] – é para levar a sério. Os ministérios laicais instituídos vão finalmente fazer a sua aparição nas nossas comunidades cristãs, na sua verdade teológica e pastoral.
Na Carta ao Prefeito da CDF, que acompanhou a publicação do m.p. Spiritus Domini (10 de janeiro de 202l), Francisco declarava: «considerei oportuno estabelecer que possam ser instituídos como Leitores ou como Acólitos [a estes ministérios deve acrescentar-se o de Catequista, instituído pouco depois, em l0 de maio de 2021] não só homens mas também mulheres, nos quais e nas quais, mediante o discernimento dos pastores e depois de uma adequada preparação, a Igreja reconhece «a firme vontade de servir fielmente a Deus e ao povo cristão», como está escrito no Motu Proprio Ministeria quaedam, por força do sacramento do Batismo e da Confirmação. A opção de conferir também a mulheres estes ofícios, que comportam uma estabilidade, um reconhecimento público e o mandato da parte do Bispo, torna mais efetiva na Igreja a participação de todos na obra da evangelização». «O “sacerdócio batismal” e o “serviço à comunidade” representam, assim, os dois pilares sobre os quais se apoia a instituição dos ministérios».
É certo que colação do Leitorado e do Acolitado continuarão a fazer parte do itinerário formativo dos candidatos à Ordenação. Mas, como muito bem esclarece o Papa Francisco na referida Carta, «no caminho que conduz à ordenação diaconal e sacerdotal, aqueles que são instituídos Leitores e Acólitos compreenderão melhor que são participantes de uma ministerialidade partilhada com outros batizados, homens e mulheres. De tal modo que o sacerdócio próprio de todos os fiéis (communis sacerdotio) e o sacerdócio dos ministros ordenados (sacerdotium ministeriale seu hierarchicum) apareçam ainda mais claramente ordenados um ao outro (cf. LG, n. 10), para a edificação da Igreja e para o testemunho do Evangelho» (cf. MLIM, n. 2l).
A concretização deste desígnio na Igreja em Portugal terá de ser gradual. Os pilares são:
– O sacerdócio batismal consciente e ativo;
– O serviço à comunidade efetivo e duradouro.
– A partir destes pilares entra em ação o discernimento dos pastores da Igreja a quem os eventuais candidatos manifestarão livremente o propósito de servir fielmente a Deus e ao seu povo. No seu discernimento, os pastores da Igreja terão em conta as notas características dos ministérios laicais instituídos e apreciarão a idoneidade dos candidatos tendo em conta vários aspetos:
– Tenham recebido os três sacramentos da iniciação cristã;
– Tenham dado provas de maturidade cristã adulta e satisfaçam os requisitos de idade previstos em Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa;
– Não estejam afetados por uma pena canónica, legitimamente imposta ou declarada;
– Sejam reconhecidos por uma vida de fé esclarecida e costumes cristãos comprovados, na família, no exercício da profissão, na comunidade eclesial e na sociedade civil;
– Tenham perseverado durante um tempo razoável no serviço pastoral da respetiva comunidade ou da Diocese, no âmbito do ministério que se propõem receber;
– Sejam bem aceites pela comunidade que vão servir, segundo critérios que não resultem da posição social mas dos valores cristãos;
– Tenham uma formação humana e cristã pelo menos de nível igual ao da média da comunidade que vão servir e que, além disso, tenham a formação específica proposta pela Instrução da Conferência Episcopal Portuguesa;
– Tenham disponibilidade suficiente para o desempenho dedicado do serviço próprio do seu ministério e para participar em atividades de formação permanente promovidas por quem de direito, ao nível diocesano;
– Sem prejuízo do direito à justa remuneração, quando a dedicação que se lhes pede for incompatível com o exercício de outra profissão, estejam dispostos a desempenhar o seu ministério com zelo e gratuitamente, sob a orientação do responsável pastoral da comunidade e de acordo com as normas litúrgicas e canónicas aplicáveis.
Na perspetiva da Conferência Episcopal Portuguesa, está, pois, na hora de Leitores e Catequistas verem a sua dedicação a Deus e à Igreja reconhecida pelo ato público da instituição. Nem todos os leitores de facto, nem todos os catequistas e colaboradores nas atividades catequéticas preencherão os requisitos já aqui apontados. Cada comunidade conhece e deve reconhecer, pela apresentação e testemunho dos seus legítimos pastores, aqueles que de forma dedicada, competente, perseverante e responsável se devotam à missão da Igreja desempenhando tarefas e assumindo encargos no âmbito dos diferentes ministérios a instituir.
A partir da vitalidade carismática e ministerial das comunidades, hão de emergir naturalmente os animadores leigos que de forma mais institucional, em comunhão cooperante com os ministros ordenados, serão o rosto do leitorado, acolitado e serviço catequético. Antevemos que cada paróquia ou igreja/reitoria venha a ter um(a) acólito(a), um(a) leitor(a) e um(a) catequista devidamente instituídos. Esse número poderá crescer nas comunidades mais populosas ou com vários centros e conforme se for consolidando esta reformação/reformatação ministerial. Respeitando a lei da gradualidade, poderá começar-se a nível vicarial/arciprestal, por aqueles que já vão desempenhando tarefas de coordenação e são referência reconhecida nas respetivas áreas.
Como concretizar esse caminho? Sem considerar aqui a situação peculiar dos candidatos às ordens sagradas, a instrução da CEP no n. 17 esclarece os procedimentos:
a) requerimento, livremente escrito e assinado pelo(a) aspirante, que há de ser apresentado ao Bispo Diocesano, a quem compete a aceitação;
b) apresentação feita pelo Pároco [ou reitor da Igreja];
c) idade conveniente e os dotes peculiares, conforme estabelecido pela Conferência Episcopal;
d) a vontade firme de servir fielmente a Deus e ao povo cristão.
a) e d) O procedimento valoriza a liberdade pessoal do fiel leigo que, certamente na base de uma ministerialidade de facto efetiva, na qual exercitou os carismas recebidos, se disponibiliza para servir a Deus e ao seu povo com responsabilidade acrescida. Mas igualmente realça o papel do Bispo que, com a colaboração de quem houver por bem, faz o discernimento indispensável.
b) A apresentação do Pároco ou do responsável pastoral da comunidade concreta é um elemento indispensável para o discernimento. Porque todos os ministérios na Igreja terão de ser exercidos de forma harmoniosa, como fator de comunhão, e não como pretextos para protagonismos individuais. Terão então de ser ouvidos os pastores da Igreja que conhecem melhor os candidatos e com os quais os futuros ministros instituídos deverão cooperar de forma construtiva. Numa Igreja sinodal, será de toda a conveniência que a apresentação do pároco seja corroborada pelo parecer favorável dos órgãos de corresponsabilidade e participação existentes.
c) O decreto da CEP estabelece a idade mínima de 25 anos. Entretanto, pensamos que a responsabilidade que os ministros instituídos assumem e a estabilidade que o seu serviço requer pressupõe que já tenham os seus percursos formativos concluídos, a sua vida profissional minimamente orientada e a situação familiar (conjugal ou celibatária) estabilizada. Tudo isso, nas circunstâncias atuais, aponta para uma idade mais madura. Depois, entre os dotes peculiares estabelecidos pela CEP – a verificar atentamente – há que referir a indispensável formação para o ministério em causa. As competências bíblicas, teológicas, litúrgicas, pastorais, pedagógicas e técnicas que a Instrução da CEP prevê, consubstanciam um percurso formativo de cerca de três anos, com uma carga horária de 5 a l0 horas semanais.
Nos nn. 22 a 25 da Instrução Pastoral da CEP que temos vindo a referir, pode ler-se um elenco bastante completo das competências atribuídas aos leitores.
«Neste diálogo vivo entre Deus e o seu povo, que é o anúncio eficaz da Palavra e a resposta gozosa da fé, o ministério do leitor aparece como um serviço de mediação, no qual a função de quem lê consiste em fazer-se mensageiro e porta-voz da Palavra de Deus. O leitor litúrgico é o último degrau para que a palavra de Deus chegue ao Povo, oferecendo a sua voz e os seus recursos de interpretação para que neles se realize essa espécie de última incarnação ou morada da Palavra entre os homens» (Directório cit., p. 425). Recorda L. A. SCHÖKEL que «por amor a esta Palavra e por agradecimento a este dom de Deus, o leitor litúrgico tem de fazer um ato de entrega e um esforço diligente. Se a sua voz não soa, não ressoará a Palavra de Cristo; se a sua voz não se articula, a Palavra tornar-se-á confusa; se não dá bem o sentido, o Povo não poderá compreender a Palavra; se não dá a devida expressão, a Palavra perderá parte da sua força. E de nada serve apelar para a omnipotência divina porque o caminho da omnipotência, também na Liturgia, passa pela incarnação» (cit. Ibid.)
Segundo a tradição litúrgica, recordada na normativa dos livros litúrgicos atuais, a leitura dos textos bíblicos na assembleia é um ofício ministerial e não presidencial. Com exceção do Evangelho que compete ao Diácono e, na sua falta, ao Presbítero, as demais leituras devem ser feitas por Leitores, mesmo que haja «fartura» de ministros superiores (IGMR 99).
Paulo VI, no motu proprio Ministeria Quaedam estabeleceu as competências do Leitor instituído. A sua função própria é «proclamar a palavra de Deus na assembleia litúrgica»; como funções subsidiárias, em caso de necessidade, compete-lhe recitar os salmos, proclamar as intenções da oração, dirigir o canto, instruir os fiéis para a receção dos sacramentos e preparar outros leitores. A proclamação das leituras bíblicas, portanto, é a tarefa específica e mais importante do Leitor, instituído ou não. Todas as restantes atribuições podem ser desempenhadas por qualquer leigo, de acordo com o CDC 230/2, em situações de suplência de outros ou como complemento da sua função específica.
Seria, portanto, «minorar a missão do Leitor instituído confiná-lo a um desempenho ritual. De facto, a Liturgia é «cume e fonte» (SC 10). Coerentemente, a epifania litúrgica do ministério confiado aos Leitores obriga a alargar os horizontes do serviço eclesial que lhes é confiado para além do momento da celebração. Assim, o Motu Proprio Ministeria Quaedam propõe-lhes tarefas de mais lato alcance pastoral, como preparar os fiéis para a receção frutuosa dos sacramentos (catequese…), ajudar na organização da liturgia da Palavra[10], e assegurar a formação do grupo dos leitores aos quais, por encargo temporário, se pode confiar o exercício de facto deste ministério» (CEP, Ministérios…, 24).
Não basta, por isso, estar alfabetizado e ter jeito para ler em público para se ser Leitor… O Leitor instituído tem como horizonte da sua missão não apenas as celebrações litúrgicas mas também a evangelização e a catequese. Poderíamos até dizer que o Leitor é o catequista na sua epifania litúrgica.
Não é fácil ser-se Leitor, nem se improvisa. Com efeito os leitores devem ser aptos e diligentemente preparados (OLM 55). Em primeiro lugar eles devem deixar-se imbuir, impregnar inteiramente pela Palavra de Deus que hão de amar, de que farão o seu tesouro mais precioso e o seu alimento quotidiano. Hão de aprofundar o seu conhecimento da Sagrada Escritura mediante uma leitura assídua, um estudo diligente, uma oração fervorosa e um testemunho credível. Sintetizando diremos que a sua preparação há-de ser geral e particular; remota, prévia, concomitante e permanente ao exercício da função. Quanto à preparação específica ela deve abarcar pelo menos três alíneas:
a) Instrução bíblica que capacite para a compreensão dos textos no Seu contexto e na perspetiva da história da Salvação:
b) Instrução litúrgica que lhes dê um conhecimento efetivo do sentido e estruturas da Liturgia da Palavra e da sua conexão com a Liturgia Eucarístico ou/e dos outros Sacramentos e sacramentais. Em particular deve conhecer por dentro os lecionários, dominando os critérios que presidiram à seleção e harmonização das leituras…
c) Preparação técnica no capítulo da leitura e da dicção bem como das artes e técnicas da comunicação oral, nomeadamente da leitura em público, com ou sem amplificação.
Uma boa proclamação tem as suas condições materiais. Limito-me a apontar as mais importantes: o livro, o ambão, a iluminação e a sonorização e o silêncio.
Finalmente, não se prepara somente o Leitor: tem de se preparar também a leitura…Mesmo o Leitor mais dotado e apetrechado técnica e espiritualmente tem de preparar a leitura
– para “ouvir”interiormente aquilo que vai proclamar exteriormente
– para se familiarizar com as palavras, pensamentos e sentimentos do texto
– para identificar o género literário do texto e descobrir a sua estrutura e dinâmica interna
– para articular com clareza e expressividade
– para se adaptar às condições acústicas, por vezes bem adversas
– para descobrir o ritmo certo, nem arrastado nem precipitado, que cada texto requer
– …
[1] Secretariado nacional de Liturgia [de España], El ministério del Lector. Directorio litúrgico-pastoral, n. 3, Madrid 1989, 10 [cf. in Notitiae 2l (1985) 423].
[2] «No dia chamado do sol, todos os que vivem nas cidades e no campo se reúnem no mesmo lugar. Leem-se as memórias dos apóstolos e os escritos dos profetas tanto quanto o tempo o permite. Quando o leitor termina, aquele que preside faz um discurso para advertir e para exortar à imitação destes belos ensinamentos» (Apologia I 66).
[3] Cf. Tertullianus, De praescritionibus adversus haereticos, in Patrologia Latina (PL), vol. II, p. 56.
[4] S. Cipriano, Ep. 39, 4.
[5] Siricius, PP, Epistula I ad Himerium episcopum Tarraconensem, 9-10: PL 13, 1142.
[6] Esta era a posição quase consensual do Sínodo dos Bispos de 1977 sobre o laicado, sufragada por 11 dos l2 grupos linguísticos em que se distribuíram os Padres Sinodais. Uma das 65 «propositiones» do Elenchus Unicus propunha ao Papa que «por causa da fundamental e igual dignidade dos discípulos de Cristo, todos os ofícios e serviços na Igreja, com excepção dos ministérios que requerem o poder de ordem, deveriam ser acessíveis tanto às mulheres como aos homens, tendo na devida conta as sensibilidades locais» (Para estas notícias, cf. C. V. Stichele, Donne e ministeri come argomento all’ordine del giorno del Sinodo sul laicato, in Donna e Ministerio. Un dibattito ecumenico, a cura do Cettina Militello, Roma 1991, 577-584. A proposta citada encontra-se na p. 582). Essa proposição foi expurgada por uma comissão de redacção que reduziu as «propositiones» de 65 para 54. Como justificação para a sua supressão foi dito que ela era supérflua, porque o Sínodo iria pedir ao Papa a revisão da Ministeria Quaedam. Efectivamente, a «proposição» 18 do último elenco é a seguinte: «O Sínodo deseja que o Motu Proprio Ministeria Quaedam seja submetido a revisão, tendo em conta os usos das Igrejas locais e, especialmente, indicando os critérios com os quais devem ser escolhidas as pessoas destinadas a cada ministério» (Ibid., 583).
[7] No n. 23 da Exortação Apostólica post-sinodal Christifideles Laici, o Papa João Paulo II acusa a receção da «proposta» do Sínodo ao anunciar a criação de uma Comissão «não só para responder a este desejo manifestado pelos Padres sinodais, mas também e ainda mais para estudar de modo aprofundado os diversos problemas teológicos, litúrgicos, jurídicos e pastorais levantados, pelo actual grande florescimento de ministérios confiados aos fiéis leigos». E concluiu, acerca desta matéria: «Esperando que a Comissão conclua o seu estudo, para que a praxe eclesial dos ministérios confiados aos leigos resulte ordenada e frutuosa, deverão ser fielmente respeitados por todas as Igrejas particulares os princípios teológicos atrás recordados, em particular a diversidade essencial entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum e, consequentemente, a diversidade entre os ministérios derivados do sacramento da Ordem e os ministérios derivados dos sacramentos do Baptismo e da Confirmação».
[8] Propositio 17. Bento XVI, na Ex. Ap. Verbum Domini, de 30 de setembro de 2010, n. 58, recorda que o leitorado é um ministério «laical».
[9] Documento final, n. 95; cf. Francisco, Ex. ap. Querida Amazónia, de 2 de fevereiro de 2020, n. 103.
[10] Este serviço dos Leitores instituídos é previsto em OLM 5l: «O ministério do leitor, conferido pelo rito litúrgico, deve ser tido em apreço. Os leitores instituídos, se estiverem presentes, devem exercer a função própria ao menos nos domingos e dias festivos, sobretudo na celebração principal. Também lhes pode ser confiado o ofício de ajudar na organização da liturgia da Palavra e, se for preciso, preparar outros fiéis que, por encargo temporário, fazem as leituras na celebração da Missa».
João da Silva PEIXOTO, Leitores e catequistas, in Boletim de Pastoral Litúrgica, n. 193-196 (2024) 54-67.